No pior momento histórico para as artes marciais, nasce um mestre
formidável.
O ano: 1931. A China ainda se debatia com a explosiva política interna que a havia empurrado, três décadas antes, para a devastadora revolução causada por um século de intervenção pelas potências europeias. Neste ano, o país ainda teria que tolerar as humilhantes violações promovidas pelos japoneses sob o governo títere de Pǔyí, o último imperador. O proverbial desinteresse das velhas gerações pelas tecnologias do ocidente acabou por provocar quando do conflito econômico e militar com esses países uma tragédia cultural em todos os níveis, com profundos reflexos nas artes marciais locais. A humilhante tragédia da Rebelião dos Boxers, trinta anos antes, degradaria para sempre a imagem do kung fu aos olhos do mundo. A velha arte marcial parecia absurda frente às táticas, armas e à imposição do consumo de drogas pelos invasores ocidentais. Afinal, defesa pessoal poderia ser adquirida pelo mero porte de uma arma; transcendência religiosa, pelo tragar de um cachimbo de ópio. Por que, então, gastar tempo e esforço em treinamento? O conceito de invencibilidade, tão caro ao velho pensamento marcial chinês - estava extinto, e com ele muito do poder e do respeito devotado aos mestres de kung fu. Mesmo o mosteiro budista de Shàolín (milenar e berço das artes marciais chinesas) havia sido pilhado e incendiado e os lendários monges combatentes chegaram a assistir impassíveis ao rapto das mulheres do vilarejo local (que haviam buscado proteção entre os muros do templo) por soldados armados de carabinas e pistolas. O caso do cavalo indomável, um evento ocorrido no Parque da Melancia, em Cantão, haveria de restaurar a chama da fé nas artes marciais. Um russo, proprietário de um circo itinerante, desafiava o público a enfrentar, mediante recompensa, um cavalo especialmente treinado para aplicar coices. Remanescente dos tempos do Império Romano, quando animais eram treinados para ferir e matar cristãos nos intervalos entre as lutas de gladiadores, este tipo de desafio ainda era comum na virada do século. Enfrentar cangurus boxeadores ou crocodilos era, então, algo normal na prática circense. Significativamente, porém, aquele cenário em especial evocava uma velha lenda da China a respeito de um cavalo selvagem enviado por bárbaros à corte chinesa. Com o presente, estrangeiros lançaram um desafio, o de domar o animal. Com isso buscavam mostrar aos governantes do Celeste Império o seu poder e a inutilidade de resistir ao assédio vindo do Oeste. Assim, mais do que uma recompensa, muitos participantes lutavam movidos pela crença de que poderiam recuperar um pouco da dignidade perdida."Abaixo, uma gravura representando soldados britânicos e japoneses lutando contra as forças chinesas durante a Batalha de Tientsin, Rebeldes boxers".
O ano: 1931. A China ainda se debatia com a explosiva política interna que a havia empurrado, três décadas antes, para a devastadora revolução causada por um século de intervenção pelas potências europeias. Neste ano, o país ainda teria que tolerar as humilhantes violações promovidas pelos japoneses sob o governo títere de Pǔyí, o último imperador. O proverbial desinteresse das velhas gerações pelas tecnologias do ocidente acabou por provocar quando do conflito econômico e militar com esses países uma tragédia cultural em todos os níveis, com profundos reflexos nas artes marciais locais. A humilhante tragédia da Rebelião dos Boxers, trinta anos antes, degradaria para sempre a imagem do kung fu aos olhos do mundo. A velha arte marcial parecia absurda frente às táticas, armas e à imposição do consumo de drogas pelos invasores ocidentais. Afinal, defesa pessoal poderia ser adquirida pelo mero porte de uma arma; transcendência religiosa, pelo tragar de um cachimbo de ópio. Por que, então, gastar tempo e esforço em treinamento? O conceito de invencibilidade, tão caro ao velho pensamento marcial chinês - estava extinto, e com ele muito do poder e do respeito devotado aos mestres de kung fu. Mesmo o mosteiro budista de Shàolín (milenar e berço das artes marciais chinesas) havia sido pilhado e incendiado e os lendários monges combatentes chegaram a assistir impassíveis ao rapto das mulheres do vilarejo local (que haviam buscado proteção entre os muros do templo) por soldados armados de carabinas e pistolas. O caso do cavalo indomável, um evento ocorrido no Parque da Melancia, em Cantão, haveria de restaurar a chama da fé nas artes marciais. Um russo, proprietário de um circo itinerante, desafiava o público a enfrentar, mediante recompensa, um cavalo especialmente treinado para aplicar coices. Remanescente dos tempos do Império Romano, quando animais eram treinados para ferir e matar cristãos nos intervalos entre as lutas de gladiadores, este tipo de desafio ainda era comum na virada do século. Enfrentar cangurus boxeadores ou crocodilos era, então, algo normal na prática circense. Significativamente, porém, aquele cenário em especial evocava uma velha lenda da China a respeito de um cavalo selvagem enviado por bárbaros à corte chinesa. Com o presente, estrangeiros lançaram um desafio, o de domar o animal. Com isso buscavam mostrar aos governantes do Celeste Império o seu poder e a inutilidade de resistir ao assédio vindo do Oeste. Assim, mais do que uma recompensa, muitos participantes lutavam movidos pela crença de que poderiam recuperar um pouco da dignidade perdida."Abaixo, uma gravura representando soldados britânicos e japoneses lutando contra as forças chinesas durante a Batalha de Tientsin, Rebeldes boxers".
A questão
básica era: durante quanto tempo, com suas armas e seus cavalos selvagens, os
invasores haveriam de humilhar a China? Muitos mestres aderiram ao sinistro
apelo, incluindo Liú Fǎmèng (Lau Fat-Mang), grão-mestre da escola Garra de
Águia. Indistintamente, os desafiantes eram escoiceados. Incapaz de tolerar o
peso da derrota dos lutadores, um artista marcial do norte, Gù Rǔzhāng (Ku Lu
Zan / Ku Yu Cheong) (1894-1952), mestre de kungfu do Shàolín e do estilo Sūn de
Tàijíquán, pisou na arena. Ele era membro da fraternidade nortista conhecida
como “Os Cinco Tigres do Norte”, formada pelos cinco mais poderosos combatentes
da época: o próprio Gù Rǔzhāng, Wàn Làishēng, Wan Laimin, Li Xianwu e Fu
Zhengsong. O desafortunado cavalo morreu rapidamente, fulminado por um potente
golpe de palma de mão em seu dorso. Numerosas testemunhas, inclusive Liú
Fǎmèng, assistiram a necropsia do animal e ficaram estarrecidos: exteriormente
pouco afetado, o animal tinha tido a espinha fortemente lesionada e muitos dos
seus órgãos internos estavam despedaçados. Os ferimentos haviam sido provocados
por Gù Rǔzhāng dentro da Palma de Ferro, sua técnica mais conhecida. O caso do
cavalo indomável foi um dos últimos registros históricos da verdadeira técnica
da Palma de Ferro. Ainda que o quebramento de tijolos, pedras e cocos seja
impressionante, ainda assim resulta apenas de demonstrações de técnicas
externas, especialmente no caso de praticantes com estrutura muscular
desenvolvida. Muitos praticantes não-chineses que praticam a técnica podem,
facilmente quebrar tijolos e pedras. Ainda assim, um golpe que possa destruir
os órgãos internos de outro ser vivo está cercado de uma aura mística
impressionante. Atualmente, ninguém é suficientemente excêntrico para matar
outro ser vivo a título de demonstração. O sacrifício de animais por
egocentrismo marcial saiu de moda nos anos 60, após os números de abate de
touros realizados por Masutatsu Oyama. Desde então, os artistas marciais
passaram a quebrar apenas objetos. Ainda assim, a Palma de Ferro representa uma
das armas tradicionais do violento passado chinês, sendo preservada até hoje
como uma disciplina de reparação para futuras ameaças. Pode-se acreditar então
que uma demonstração como a de Gù Rǔzhāng só poderia voltar a acontecer se a
China passasse por outro momento crítico.
Quando o
campeão tornou-se um tigre
Gù Rǔzhāng tinha 37 anos quando abateu o cavalo em Guangzhou. Nesta época
já era um bem estabelecido integrante da comunidade marcial, especialmente nas
províncias de Húběi, Húnán, Jiāngsū e Zhèjiāng. Descendente de uma família de
forte influência marcial - era filho de Gù Lìzhī, renomado seguidor das
técnicas do mosteiro de Shàolín em Hénán e mestre do estilo muçulmano do Tántuǐ
(pernas explosivas). O patriarca havia fundado seu próprio serviço de escolta
de caravanas fora de Nánjīng. Nesta época, assaltantes e escroques eram comuns
nas estradas chinesas, causando aos viajantes impacto semelhante ao provocado
pelos bandoleiros do Oeste americano. Assim, muitos artistas marciais montaram
suas próprias empresas de proteção a caravanas e a viajantes; a Casa de Escolta
de “Lei Chi” era notória por sua eficiência. Após algum tempo, Gù Lìzhī possuía
mais de 200 combatentes à sua disposição. Tragicamente, ele morreu quando seu
filho tinha apenas 14 anos. Gù Rǔzhāng, que havia passado a maior parte da
infância em uma escola privada, praticou kungfu com o pai por apenas dois anos.
Em seu leito de morte, Gù Lìzhī lamentou profundamente não ter repassado seus
conhecimentos marciais aos filhos Lu Zan e Yu Man (o mais velho). Ele
recomendou a ambos que se quisessem seguir a carreira marcial deveriam
encontrar o tio, Yán Jìwēn, em Shāndōng. Dois anos depois, Gù Rǔzhāng fez
exatamente isso, abandonando os estudos para se dedicar integralmente às artes
marciais. Com o mestre Yán Jìwēn, treinou durante onze anos as técnicas do
Punho de Shàolín , Camisa de Ferro de Shàolín e Palma de Ferro.
Em 1929 a
comunidade marcial chinesa, reunida, buscou restaurar uma parte da honra
perdida promovendo um exame nacional de kungfu sob os auspícios do Instituto
Nacional de Artes Marciais de Nánjīng. Os participantes competiriam em luta
livre, combate, armas curtas e armas longas. Durante a fase final da competição
não haveria diferenciação entre pesos, normas de segurança ou equipamentos de
proteção. Ao final, Gù Rǔzhāng foi selecionado para o grupo de 15 atletas - os
primeiros colocados no exame que passariam a representar as artes marciais
chinesas. Depois do exame, o mestre de Běi Shàolín (Shaolin do Norte) rumou
para o sul da China junto com os outros quatro integrantes do Grupo dos Quinze:
Wàn Làishēng, Wan Laimin, Li Xianwu e Fu Zhengsong.("Ao lado,Ku Yu Cheong faz a postura puxar o arco e atirar no tigre, Taiji da família Yang")
A missão da equipe, os
agora chamados “Cinco Tigres do Norte” era representar os estilos do Norte no
Sul da China. Marcialmente, o país era dividido entre os chamados estilos do
norte e os estilos do sul (a diferenciação predomina até hoje); a linha
divisória era o rio Amarelo (Chángjiāng). Gù Rǔzhāng abriu sua escola, a
“Escola de Artes Marciais de Guangzhou”, na estrada leste Wen De, na mesma área
onde estava instalada a escola do famoso professor Tán Sān, adepto do estilo
Càilifó, do sul. Ainda que os dois mestres viessem a se tornar rivais, eles
souberam manter o respeito pelas mútuas habilidades marciais. Em um inédito
exemplo de camaradagem, Tán Sān e Gù Rǔzhāng dividiriam técnicas e discípulos,
o que provocou reações espantadas por parte dos integrantes dos fechados
círculos de artes marciais de então. Tán Sān desenvolveu uma nova forma de
Càilifó(Choy Lay Fut), chamada Běishèng(Bak Sing), a partir da adição de
técnicas do Shàolín ao seu próprio sistema. Para Gù Rǔzhāng, o Càilifó era
apenas mais um estilo a ser analisado durante sua longa pesquisa sobre as artes
marciais.
Ele conseguiu desenvolver um considerável repertório técnico a partir
do treinamento com muitos dos maiores mestres de sua época. Além do treinamento
do Tántuǐ e do Shàolín, ele continuou seu aprendizado dos estilos muçulmanos
com o conhecido especialista Yú Zhènshēng. Ele ainda seguiu o grande espadachim
de Wǔdāng, general Li Jǐnglín, que lhe revelou as sutilezas do Tàijíquán e do
seu famoso estilo pessoal, a Espada de Tàijǐ. Gù Rǔzhāng também conheceu a
fundo os estilos internos. Para isso, especializou-se em cada um dos três
sistemas dominantes do Tàijíquán, Xíngyì e Bāguà a partir dos ensinamentos de
um dos mais importantes mestres do seu tempo, Sūn Lùtáng. Sūn havia fundido as
três escolas em seu próprio estilo, o Sūn Tàijíquán, que acabou por se tornar
um dos quatro estilos de Tàijíquán reconhecidos para competição pela República
Popular da China. Gù Rǔzhāng foi um dos grandes divulgadores do novo estilo de
Tàijíquán; em sua escola, concomitantemente ao Tàijíquán aprendido com o
general Li, ensinava o estilo Sūn a seus alunos.
Um moderno
herói de Shàolín
Apesar de sua educação diversificada, Gù Rǔzhāng ficou mais conhecido pelas
técnicas de Shàolín. Ele foi um dos mais importantes divulgadores do estilo
Shaolin do Norte (Bak Siu Lum, Pek Siu Lum ou Běi Shàolín) no sul da China. Ele
foi o mestre de um complexo sistema conhecido como “As Dez Rotinas de Mão do
Shaolin”, também chamado de “As Mãos de Pedra de Shaolin”. Estudantes de
Shàolín eram instruídos no manejo de 18 armas tradicionais e Gù Rǔzhāng não foi
exceção, tendo aprendido todas as técnicas e se tornado especialista no manejo
das duas espadas longas. Ele fortaleceu sua técnica do Corpo de Ferro
estabelecendo um conjunto de 18 rotinas de Qìgōng pesado (marcial) chamado “O
Pequeno Sino de Ouro”.
Sobretudo, ele foi conhecido por sua técnica de Palma de
Ferro, particularmente depois do episódio do abate do cavalo em 1931, e de uma
demonstração em que quebrou 13 tijolos dispostos sem espaçamento com uma leve
palmada. Segundo relatos, o golpe foi desferido suavemente e os tijolos se
partiram sem fazer barulho.
O Legado de
um Tigre
Por seu profundo conhecimento marcial e mesmo por seu aspecto lendário, Gù
Rǔzhāng tornou-se um dos mais requisitados e ativos mestres de seu tempo. Além
de ministrar aulas em sua própria academia, também foi professor, durante certo
período, do famoso Instituto de Artes Marciais das Províncias de Cantão e
Guǎngxī. Os últimos vinte anos de sua vida foram passados em Cantão, na sua
própria escola. Apesar das restrições governamentais, ele continuou ensinando
sua arte mesmo depois dos primeiros movimentos da chamada Revolução Cultural
(movimento promovido por Máo Zédōng e que foi responsável pela destruição de
parte da antiga cultura chinesa). Faleceu em 1952, aos 58 anos de idade. Sua
arte sobreviveu através de sete discípulos: Chan Ham Man, Lau Kam Tong, Lun Chi
Sheung, Poon Chu, Tse Chung Sang, Wu Siu Po e Yán Shàng Mo.
Hoje, muitos alunos
dos discípulos do Tigre do Norte ministram aulas em vários lugares do mundo.
Definitivamente, o Shaolin do Norte sobrevive através das novas gerações
inspirado, fundamentalmente, pelo espírito do venerável mestre vindo do Norte.
“Quando o espírito é
forte,a saúde do seu corpo será boa. Quando o espírito é fraco e disperso as
condições de saúde,a saúde será frágil.”
-Grão Mestre Ku Yu Cheong
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