segunda-feira, 6 de julho de 2015

Ku Yu Cheong(顾汝章): Um grande mestre da palma de ferro

No pior momento histórico para as artes marciais, nasce um mestre formidável.
O ano: 1931. A China ainda se debatia com a explosiva política interna que a havia empurrado, três décadas antes, para a devastadora revolução causada por um século de intervenção pelas potências europeias. Neste ano, o país ainda teria que tolerar as humilhantes violações promovidas pelos japoneses sob o governo títere de Pǔyí, o último imperador. O proverbial desinteresse das velhas gerações pelas tecnologias do ocidente acabou por provocar quando do conflito econômico e militar com esses países uma tragédia cultural em todos os níveis, com profundos reflexos nas artes marciais locais. A humilhante tragédia da Rebelião dos Boxers, trinta anos antes, degradaria para sempre a imagem do kung fu aos olhos do mundo. A velha arte marcial parecia absurda frente às táticas, armas e à imposição do consumo de drogas pelos invasores ocidentais. Afinal, defesa pessoal poderia ser adquirida pelo mero porte de uma arma; transcendência religiosa, pelo tragar de um cachimbo de ópio. Por que, então, gastar tempo e esforço em treinamento? O conceito de invencibilidade, tão caro ao velho pensamento marcial chinês - estava extinto, e com ele muito do poder e do respeito devotado aos mestres de kung fu. Mesmo o mosteiro budista de Shàolín (milenar e berço das artes marciais chinesas) havia sido pilhado e incendiado e os lendários monges combatentes chegaram a assistir impassíveis ao rapto das mulheres do vilarejo local (que haviam buscado proteção entre os muros do templo) por soldados armados de carabinas e pistolas. O caso do cavalo indomável, um evento ocorrido no Parque da Melancia, em Cantão, haveria de restaurar a chama da fé nas artes marciais. Um russo, proprietário de um circo itinerante, desafiava o público a enfrentar, mediante recompensa, um cavalo especialmente treinado para aplicar coices. Remanescente dos tempos do Império Romano, quando animais eram treinados para ferir e matar cristãos nos intervalos entre as lutas de gladiadores, este tipo de desafio ainda era comum na virada do século. Enfrentar cangurus boxeadores ou crocodilos era, então, algo normal na prática circense. Significativamente, porém, aquele cenário em especial evocava uma velha lenda da China a respeito de um cavalo selvagem enviado por bárbaros à corte chinesa. Com o presente, estrangeiros lançaram um desafio, o de domar o animal. Com isso buscavam mostrar aos governantes do Celeste Império o seu poder e a inutilidade de resistir ao assédio vindo do Oeste. Assim, mais do que uma recompensa, muitos participantes lutavam movidos pela crença de que poderiam recuperar um pouco da dignidade perdida."Abaixo, uma g
ravura representando soldados britânicos e japoneses lutando contra as forças chinesas durante a Batalha de Tientsin, Rebeldes boxers".

A questão básica era: durante quanto tempo, com suas armas e seus cavalos selvagens, os invasores haveriam de humilhar a China? Muitos mestres aderiram ao sinistro apelo, incluindo Liú Fǎmèng (Lau Fat-Mang), grão-mestre da escola Garra de Águia. Indistintamente, os desafiantes eram escoiceados. Incapaz de tolerar o peso da derrota dos lutadores, um artista marcial do norte, Gù Rǔzhāng (Ku Lu Zan / Ku Yu Cheong) (1894-1952), mestre de kungfu do Shàolín e do estilo Sūn de Tàijíquán, pisou na arena. Ele era membro da fraternidade nortista conhecida como “Os Cinco Tigres do Norte”, formada pelos cinco mais poderosos combatentes da época: o próprio Gù Rǔzhāng, Wàn Làishēng, Wan Laimin, Li Xianwu e Fu Zhengsong. O desafortunado cavalo morreu rapidamente, fulminado por um potente golpe de palma de mão em seu dorso. Numerosas testemunhas, inclusive Liú Fǎmèng, assistiram a necropsia do animal e ficaram estarrecidos: exteriormente pouco afetado, o animal tinha tido a espinha fortemente lesionada e muitos dos seus órgãos internos estavam despedaçados. Os ferimentos haviam sido provocados por Gù Rǔzhāng dentro da Palma de Ferro, sua técnica mais conhecida. O caso do cavalo indomável foi um dos últimos registros históricos da verdadeira técnica da Palma de Ferro. Ainda que o quebramento de tijolos, pedras e cocos seja impressionante, ainda assim resulta apenas de demonstrações de técnicas externas, especialmente no caso de praticantes com estrutura muscular desenvolvida. Muitos praticantes não-chineses que praticam a técnica podem, facilmente quebrar tijolos e pedras. Ainda assim, um golpe que possa destruir os órgãos internos de outro ser vivo está cercado de uma aura mística impressionante. Atualmente, ninguém é suficientemente excêntrico para matar outro ser vivo a título de demonstração. O sacrifício de animais por egocentrismo marcial saiu de moda nos anos 60, após os números de abate de touros realizados por Masutatsu Oyama. Desde então, os artistas marciais passaram a quebrar apenas objetos. Ainda assim, a Palma de Ferro representa uma das armas tradicionais do violento passado chinês, sendo preservada até hoje como uma disciplina de reparação para futuras ameaças. Pode-se acreditar então que uma demonstração como a de Gù Rǔzhāng só poderia voltar a acontecer se a China passasse por outro momento crítico.
Quando o campeão tornou-se um tigre
Gù Rǔzhāng tinha 37 anos quando abateu o cavalo em Guangzhou. Nesta época já era um bem estabelecido integrante da comunidade marcial, especialmente nas províncias de Húběi, Húnán, Jiāngsū e Zhèjiāng. Descendente de uma família de forte influência marcial - era filho de Gù Lìzhī, renomado seguidor das técnicas do mosteiro de Shàolín em Hénán e mestre do estilo muçulmano do Tántuǐ (pernas explosivas). O patriarca havia fundado seu próprio serviço de escolta de caravanas fora de Nánjīng. Nesta época, assaltantes e escroques eram comuns nas estradas chinesas, causando aos viajantes impacto semelhante ao provocado pelos bandoleiros do Oeste americano. Assim, muitos artistas marciais montaram suas próprias empresas de proteção a caravanas e a viajantes; a Casa de Escolta de “Lei Chi” era notória por sua eficiência. Após algum tempo, Gù Lìzhī possuía mais de 200 combatentes à sua disposição. Tragicamente, ele morreu quando seu filho tinha apenas 14 anos. Gù Rǔzhāng, que havia passado a maior parte da infância em uma escola privada, praticou kungfu com o pai por apenas dois anos. Em seu leito de morte, Gù Lìzhī lamentou profundamente não ter repassado seus conhecimentos marciais aos filhos Lu Zan e Yu Man (o mais velho). Ele recomendou a ambos que se quisessem seguir a carreira marcial deveriam encontrar o tio, Yán Jìwēn, em Shāndōng. Dois anos depois, Gù Rǔzhāng fez exatamente isso, abandonando os estudos para se dedicar integralmente às artes marciais. Com o mestre Yán Jìwēn, treinou durante onze anos as técnicas do Punho de Shàolín , Camisa de Ferro de Shàolín e Palma de Ferro.
Em 1929 a comunidade marcial chinesa, reunida, buscou restaurar uma parte da honra perdida promovendo um exame nacional de kungfu sob os auspícios do Instituto Nacional de Artes Marciais de Nánjīng. Os participantes competiriam em luta livre, combate, armas curtas e armas longas. Durante a fase final da competição não haveria diferenciação entre pesos, normas de segurança ou equipamentos de proteção. Ao final, Gù Rǔzhāng foi selecionado para o grupo de 15 atletas - os primeiros colocados no exame que passariam a representar as artes marciais chinesas. Depois do exame, o mestre de Běi Shàolín (Shaolin do Norte) rumou para o sul da China junto com os outros quatro integrantes do Grupo dos Quinze: Wàn Làishēng, Wan Laimin, Li Xianwu e Fu Zhengsong.("Ao lado,Ku Yu Cheong faz a postura puxar o arco e atirar no tigre, Taiji da família Yang")
 A missão da equipe, os agora chamados “Cinco Tigres do Norte” era representar os estilos do Norte no Sul da China. Marcialmente, o país era dividido entre os chamados estilos do norte e os estilos do sul (a diferenciação predomina até hoje); a linha divisória era o rio Amarelo (Chángjiāng). Gù Rǔzhāng abriu sua escola, a “Escola de Artes Marciais de Guangzhou”, na estrada leste Wen De, na mesma área onde estava instalada a escola do famoso professor Tán Sān, adepto do estilo Càilifó, do sul. Ainda que os dois mestres viessem a se tornar rivais, eles souberam manter o respeito pelas mútuas habilidades marciais. Em um inédito exemplo de camaradagem, Tán Sān e Gù Rǔzhāng dividiriam técnicas e discípulos, o que provocou reações espantadas por parte dos integrantes dos fechados círculos de artes marciais de então. Tán Sān desenvolveu uma nova forma de Càilifó(Choy Lay Fut), chamada Běishèng(Bak Sing), a partir da adição de técnicas do Shàolín ao seu próprio sistema. Para Gù Rǔzhāng, o Càilifó era apenas mais um estilo a ser analisado durante sua longa pesquisa sobre as artes marciais.

Ele conseguiu desenvolver um considerável repertório técnico a partir do treinamento com muitos dos maiores mestres de sua época. Além do treinamento do Tántuǐ e do Shàolín, ele continuou seu aprendizado dos estilos muçulmanos com o conhecido especialista Yú Zhènshēng. Ele ainda seguiu o grande espadachim de Wǔdāng, general Li Jǐnglín, que lhe revelou as sutilezas do Tàijíquán e do seu famoso estilo pessoal, a Espada de Tàijǐ. Gù Rǔzhāng também conheceu a fundo os estilos internos. Para isso, especializou-se em cada um dos três sistemas dominantes do Tàijíquán, Xíngyì e Bāguà a partir dos ensinamentos de um dos mais importantes mestres do seu tempo, Sūn Lùtáng. Sūn havia fundido as três escolas em seu próprio estilo, o Sūn Tàijíquán, que acabou por se tornar um dos quatro estilos de Tàijíquán reconhecidos para competição pela República Popular da China. Gù Rǔzhāng foi um dos grandes divulgadores do novo estilo de Tàijíquán; em sua escola, concomitantemente ao Tàijíquán aprendido com o general Li, ensinava o estilo Sūn a seus alunos.
Um moderno herói de Shàolín
Apesar de sua educação diversificada, Gù Rǔzhāng ficou mais conhecido pelas técnicas de Shàolín. Ele foi um dos mais importantes divulgadores do estilo Shaolin do Norte (Bak Siu Lum, Pek Siu Lum ou Běi Shàolín) no sul da China. Ele foi o mestre de um complexo sistema conhecido como “As Dez Rotinas de Mão do Shaolin”, também chamado de “As Mãos de Pedra de Shaolin”. Estudantes de Shàolín eram instruídos no manejo de 18 armas tradicionais e Gù Rǔzhāng não foi exceção, tendo aprendido todas as técnicas e se tornado especialista no manejo das duas espadas longas. Ele fortaleceu sua técnica do Corpo de Ferro estabelecendo um conjunto de 18 rotinas de Qìgōng pesado (marcial) chamado “O Pequeno Sino de Ouro”. 

Sobretudo, ele foi conhecido por sua técnica de Palma de Ferro, particularmente depois do episódio do abate do cavalo em 1931, e de uma demonstração em que quebrou 13 tijolos dispostos sem espaçamento com uma leve palmada. Segundo relatos, o golpe foi desferido suavemente e os tijolos se partiram sem fazer barulho.
O Legado de um Tigre

Por seu profundo conhecimento marcial e mesmo por seu aspecto lendário, Gù Rǔzhāng tornou-se um dos mais requisitados e ativos mestres de seu tempo. Além de ministrar aulas em sua própria academia, também foi professor, durante certo período, do famoso Instituto de Artes Marciais das Províncias de Cantão e Guǎngxī. Os últimos vinte anos de sua vida foram passados em Cantão, na sua própria escola. Apesar das restrições governamentais, ele continuou ensinando sua arte mesmo depois dos primeiros movimentos da chamada Revolução Cultural (movimento promovido por Máo Zédōng e que foi responsável pela destruição de parte da antiga cultura chinesa). Faleceu em 1952, aos 58 anos de idade. Sua arte sobreviveu através de sete discípulos: Chan Ham Man, Lau Kam Tong, Lun Chi Sheung, Poon Chu, Tse Chung Sang, Wu Siu Po e Yán Shàng Mo.

 Hoje, muitos alunos dos discípulos do Tigre do Norte ministram aulas em vários lugares do mundo. Definitivamente, o Shaolin do Norte sobrevive através das novas gerações inspirado, fundamentalmente, pelo espírito do venerável mestre vindo do Norte.

“Quando o espírito é forte,a saúde do seu corpo será boa. Quando o espírito é fraco e disperso as condições de saúde,a saúde será frágil.”
                                                                                    -Grão Mestre Ku Yu Cheong

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